quarta-feira, 21 de maio de 2008

Deixem a nossa ortografia em paz!

1 — Neste mar quase infinito em que se transformou a internet, às vezes é quase impossível descobrir a verdadeira origem das informações — e dos boatos — que chegam até nossa casa. Nas últimas semanas, muita gente recebeu um e-mail que anuncia, para o final deste ano, a chegada de uma tal "reforma da Língua Portuguesa". Uma jovem leitora, naturalmente preocupada com a educação de sua filhinha, que ainda está na pré-escola, pediu que eu comentasse a notícia, porque — diz ela — "eu preciso saber se isso vai ser bom ou ruim para a minha filha". Pois eu responderia, sem a menor hesitação, que esta catástrofe, se chegar a ocorrer, vai ser ruim para ela e para todos nós. Felizmente, como no caso do aquecimento global, há sempre a esperança de que o bom senso volte a prevalecer e consigamos evitar o desastre anunciado. Explico.


No mundo inteiro, o Português foi um dos poucos idiomas que editaram uma norma "oficial" para regular sua ortografia. A iniciativa é relativamente recente, pois até a 2ª Grande Guerra cada cidadão podia escrever como lhe dava na veneta, usando acentos, agás, ípsilons e letras mudas a seu bel-prazer. Esta situação absurda, impensável nos dias de hoje, felizmente terminou quando o Brasil e Portugal assinaram o Acordo de 1943, incentivado pelo nosso benigno ditador Getúlio Vargas como parte de seu esforço para modernizar o país. É este o texto que serve de base para aquele sistema que o brasileiro médio chama respeitosamente de "ortografia oficial", atribuindo-lhe uma infalibilidade maior que a do Papa, embora os estudiosos saibam que ele (o acordo, é claro) não é tão oficial nem tão infalível assim.


Em Portugal, discussões posteriores levaram a uma versão ligeiramente modificada desse acordo, transformada em lei por aquele país em 1945; o Brasil, no entanto, não quis acompanhá-lo, ficando mesmo com o texto de 1943 — o que naturalmente gerou algumas diferenças entre o sistema usado aqui e o sistema adotado por Portugal (e pelas colônias que, na época, estavam sob seu domínio). Abrimos um livro editado em Portugal e encontramos colecção, adopção, eléctrico, facto, subtil, sumptuoso; amámos, trabalhámos, fémur, bónus, António, sinónimo — onde, no Brasil, encontramos coleção, adoção, elétrico, fato, sutil, suntuoso; amamos, trabalhamos, fêmur, bônus, Antônio, sinônimo. Se isso nunca dissuadiu os bons leitores portugueses de ler publicações brasileiras (ou vice-versa), não há dúvida, por outro lado, de que essas diferenças constituem um fator perturbador para o leitor mais simples ou para o público infantil.


Talvez por isso (ou sob esse pretexto), surgiu, a partir da década de 80, um movimento messiânico para "unificar a língua portuguesa", agora incluindo os países lusófonos que haviam conquistado sua soberania, como Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, entre outros. Formaram-se grupos e comissões, redigiram-se propostas e cartas de intenção, fixaram-se projetos e anteprojetos sucessivos, com objeções de todos os lados, tentando chegar-se a essa "unificação", numa versão singularíssima da Torre de Babel que muito teria agradado a J. L. Borges por sua ironia: agora todos falam a mesma língua, mas defendem projetos completamente diferentes para o edifício que pretendem construir. Como em Babel, não haverá torre. O produto de todas essas idas e vindas foi uma colcha de retalhos que precisa, para entrar em vigor, da aprovação do Legislativo de todos os países participantes — o que, felizmente, não está sendo fácil de obter. Por um lado, porque alguns desconfiam de que o espírito oculto do Acordo seja apenas o de favorecer grandes grupos editoriais, que teriam assim um mercado muito maior; por outro, porque uma mudança na ortografia — seja qual for a sua amplitude — traz a imediata necessidade de substituir os livros das bibliotecas escolares de todo o país. A criança que está aprendendo a escrever no novo sistema não pode ficar em contato com publicações que utilizem o sistema antigo; a inevitável atualização das bibliotecas representaria um gasto pesado demais para todos, ou quase todos, os países lusófonos, que ainda enfrentam graves problemas estruturais.


Além disso, os termos do Acordo favoreceriam alguns países e prejudicariam outros — especialmente o Brasil. A meu ver, nós deveríamos ser os maiores interessados em "melar" essa irresponsável aventura, pois — se fosse aprovada a reforma — nós teremos de ceder muito mais que os outros, abandonando hábitos ortográficos já consolidados em nosso meio para contentar a pressão de Portugal e de suas antigas colônias, que, por razões históricas, estão claramente dentro da área de influência cultural lusitana.
2 — Felizmente, começamos a notar, de alguns anos para cá, uma nítida atitude protelatória dos principais países envolvidos, certamente ditada pela cautela e pela prudência; afinal, mudar os hábitos ortográficos, que acabam se tornando praticamente uma segunda natureza dos falantes de uma língua, é assunto sério demais para se ter pressa ou açodamento. Se os deuses ajudarem, a idéia vai ser posta, mais uma vez, em banho-maria, ficando a sua aprovação final para as calendas gregas — maneira elegante que os antigos usavam para denominar o nosso famoso dia de São Nunca.

Se, por desgraça, esta desnecessária reforma chegar a entrar em vigor, os brasileiros (mais) e os portugueses (menos) vão ter de mudar sua maneira de escrever. Antes de prosseguir, contudo, acho melhor mostrar aos meus leitores as modificações anunciadas. Primeiro, ela propõe que nosso alfabeto passe a incluir também as letras k, w e y. Isso muda alguma coisa? Não, porque seu uso obedecerá às mesmas regras de hoje: só nos símbolos científicos internacionais e nos vocábulos derivados de nomes próprios (shakespeariano, darwinista, keynesiano, etc.). A novidade é que, fazendo parte do alfabeto oficial, a escola deverá ensinar às crianças o lugar que essas três letras ocupam na ordem alfabética.
Outra área em que haveria inovação é a das chamadas consoantes mudas. Quanto a elas, nada seria alterado para os brasileiros. Elas permaneceriam nas palavras em que sempre foram pronunciadas, como em compacto, ficção, convicto, adepto, apto, eucalipto, núpcias, etc.; seriam consideradas facultativas nos vocábulos em que há divergência entre as normas cultas dos dois países (aspecto ou aspeto, dicção ou dição, facto ou fato, sector ou setor, ceptro ou cetro, corrupto ou corruto, recepção ou receção, amígdala ou amídala, amnistia ou anistia, sumptuoso ou suntuoso), aliás, como sempre aconteceu, numa convivência para lá de pacífica; finalmente, desapareceriam nas palavras em que são mudas — o que significa que Portugal e os países africanos teriam de eliminá-las de palavras como acção, afectivo, acto, director, exacto, adoptar, baptizar; no Brasil, elas não são usadas desde 1943.
Na acentuação é que o ônus da mudança é mais pesado para o Brasil, pois deixaríamos de aplicar algumas regras que Portugal já não adota há muito: (1) seriam eliminados os acentos que marcam o ditongo aberto em palavras como jóia, heróico, idéia, assembléia; (2) desapareceriam o trema e o acento agudo no U, depois de G e de Q, em palavras como sagüi, lingüiça, seqüestro, argúem, averigúem; (3) seria eliminado o acento circunflexo dos hiatos ÊE, ÔO (vêem, vôo, enjôo, relêem). Continuariam facultativos, como sempre, (1) o acento da 1ª pessoa do plural do pretérito perfeito (na pronúncia lusa, amámos e levámos, para distinguir de amamos e levamos, do presente do indicativo); (2) o acento agudo ou circunflexo sobre o E ou o O, nas palavras em que há divergência quanto ao timbre: acadêmico, académico; Antônio, António; Amazônia, Amazónia; fenômeno, fenómeno; gênio, génio; fênix, fénix; ônix, ónix; fêmur, fémur; sêmen, sémen; tênis, ténis; Vênus, Vénus; bônus, bónus; bebê, bebé; caratê, caraté; guichê, guiché; e muitas mais.
A meta obsessiva dos reformistas é diminuir ao máximo as diferenças entre Portugal e Brasil, cobrando de cada país sua taxa de sacrifício. Considerando a unificação gráfica do Português como um valor supremo — o que é perfeitamente discutível, se considerarmos o preço que se vai pagar por isso —, a reforma não hesita em limar aqui, aparar ali, lixar acolá, numa sucessão de "retoques" que parecem feitos por quem não é do ramo. Isso fica muito claro nas mudanças propostas para a acentuação, insignificantes para trazer uma verdadeira melhora no sistema, mas amplas o suficiente para perturbar a vida de todos nós — brasileiros, angolanos, portugueses, moçambicanos e os demais irmãos lusófonos.
Na verdade, deveríamos ou deixar tudo como está, ou eliminar o acento de uma vez por todas. Na primeira hipótese (a mais econômica), daremos ao sistema atual o tempo indispensável para sua maturação; o trabalho que começou em 1971 deve prosseguir por mais cem anos, no mínimo, quando então ele estará consolidado, infiltrado até mesmo no movimento da mão que traça as palavras, perfeitamente assimilado por brasileiros que já terão nascido dentro dele, sem ter conhecido o sistema de 1943 ou anteriores. A segunda hipótese é muito mais radical e trabalhosa, pois exigiria um grande esforço de todos os já alfabetizados, obrigando-os a evitar, no texto escrito, as armadilhas de interpretação que hoje o acento se encarrega de desfazer — mas projetaria um futuro muito mais simples para os netos de nossos netos, pois teriam muito maior facilidade em dominar o sistema ortográfico. Não duvido que custo fabuloso dessa mudança fosse compensado, a médio prazo, pela maior eficiência dos programas de alfabetização.
O que não tem cabimento é continuar usando acentuação mas mudar algumas regras em nome de uma unificação que é utópica e impossível, pois, considerando o grande número de formas facultativas que foram mantidas, os livros do Brasil e de Portugal continuarão a ser diferentes. Jamais um livro escolar editado aqui poderá ser utilizado no além-mar, e vice-versa. A unificação ortográfica, que era a razão de ser da reforma, cai como um castelo de cartas — sem falar nas incontornáveis diferenças lexicais entre um país que apregoa "berbequim para betão ao desbarato" de outro que anuncia "furadeira para concreto em oferta" — e estão falando da mesma coisa.

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